Na morte de um poeta...
Pedro Bandeira Freire, um poeta que andou nas bocas da canção popular (entre fados, guitarradas, e o vulgar cançonetismo...), mas que era e merecia mais do que isso (embora se compreenda que um poeta não possa viver só do ar...), libertou-se ontem das amarras que o prendiam ao corpo e partiu ontem para o convívio dos poetas que habitam os homéricos Campos Elísios.
Por acaso ou talvez não, foi também dono de um cinema (aliás 4 em 1, e daí a sua designação: o Quarteto) que marcou a minha geração e outras que vieram não apenas porque passou muitos dos melhores filmes projectados em Portugal, mas por se ter tornado quase um lugar de culto e de destino obrigatório de cinéfilos durante as três últimas décadas do século XX. Antes disso, fora co-fundador da Livraria Opinião, outro grande marco de gerações, local de passagem e permanência (para muitos, como eu, era quase uma segunda casa), espaço de tertúlia multidisciplinar e muito mais, que tendo resistido ao fascismo anquilosante não sobreviveu ao pós-25 de Abril de 1974 (para o qual tanto contribuiu), pois nessa altura "a poesia esta(va) na rua"!
Pedro, a musa que te inspirou por forma duradoura, quis nesta ocasião em que partes para outras paragens oferecer-te um Requiem que te rende pública homenagem e juntar-lhe um "rumor" da inspiração que transmitias. Ars Poetica 2U orgulha-se de ter sido escolhido como porta-voz.
David Zink
Requiem para Pedro Bandeira Freire
Na manhã da tua despedida o sol brilhou nas campaínhas e margaridas das escarpas citadinas. Depois foi-se retraindo até as nuvens emprenharem da dimensão da tua perda. Enquanto estavas em coma eu gostaria de ter tido um segundo a teu lado e pegar-te na mão e levar-te uma parcela do sol e perfumes do verão que a primavera cozinha. Aquele verão pelo qual aguardavas encerrado na tua casa sombria. Sombrio imagino o quarto do hospital onde teu coração exausto, na madrugada, se entregou. Mas eu sei, eu sei, que por dentro do azul de teus olhos reinava nesse momento todo o mar do mundo. E é por isso que aqui te deixo, pedro, estas palavras antigas.
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19 Agosto – 03 Setembro 1990
Fuzeta. O estender dúctil dos pantanos arenosos no voo picado das pequenas aves brancas como pedras lácteas em queda. Tojo, canas, detritos, tornozelos fulgindo conchas, constelações de mil patas delicadas na areia fina, luras, refúgios. Linguagens. Apreender as suas infinitas cambiantes..... Tu vens lá de fora do mundo com a tua linguagem dentro do idioma dele. E súbito sou assim tão nua e tensa a esses gritos, a esses sons que a mim chegam. Uma palavra é então um enorme polvo de mil tentáculos que se me enrodilha nas pernas. Tropeço, levanto-me, tropeço de novo e então estou assim tão cansada. Cansada da minha surdez, da minha inépcia diante da tua linguagem. Tu dizes lua, dizes árvore, dizes pedra. Tu dizes. Eu sei o que é uma lua, uma árvore, uma pedra. Não sei porém de que lua, árvore, pedra me falas tu. Fica então apenas o risco abstracto desses signos, sem substância, volume, cheiro. Fica apenas na grande folha branca de nossas vidas a palavra lua, árvore, pedra. Porém eu sei que a lua mesma pode ser árvore e a pedra que me falas lua. Mas como saber isso de ti, como arrancar-te desse teu hermético linguarejar? Pedro, diz-me que lua, que pedra é essa de que me contas. Não me abandones neste deserto de letras mudas. Pedro, eu não sei nada e não entro no teu universo que é o mundo. Há uma mata densa e escura e branca que me impede o caminho. Eu estou de mãos vazias e esgotada de investidas cegas e vãs no denso bosque. Do outro lado ouço o rumor do teu corpo. Tu gritas “ouves-me?” e eu respondo. Mas em verdade não te ouço, mas em verdade não te vejo e o rumor que me chega é apenas o som de meu respirar sufocado. Pedro, lá do local onde te encontras atira-me uma mão. Dá-me machados, cutelos, fogos, navalhas, roupas, risos. Faz com que eu seja tractor, ceifeira, debulhadora, serra eléctrica. Ajuda-me a ceifar este milheiral bravio de palavras. Faz com que eu abra caminhos até ao teu fresco solar pomar e diz-me depois o nome de cada fruto, cada folha, cada pedra. Pedro dá-me a comer as laranjas sumarentas do teu mundo
Kitó
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