AUTÓPSIA DE UMA CORRIDA DE AUTOMÓVEIS
“Não queiras ser mais vivo do que és morto” (Augusto de Campos)
Gosto muito de cães que gostem de água.
Fui com um cão bom e branco ver os carros velozes.
Bicho das sementes, o cão ladrava aos motores e
fez os seus grandes inimigos entre os vermes.
As pessoas olhavam para o cão grande vindo da neve
e tinham medo que ele se transformasse num objecto violento;
depois, vendo-o manso,
queriam discutir pneus com o cão branco.
Penso que
o animal é fã de Galileu Galilei:
4 motores + 2 motores + 3 estupores = Sol ao cubo com morangos,
a Terra parece boa e, muitas vezes, marreta.
Não chove, ainda bem para as travagens
– e ganha menos quem trava.
Saio,
creio que o cão desconfia:
a morte andou a cheirar por dentro da água
das chuvas que, afinal, não ganhou rosto algum.
Com Tales de Mileto e
com o meu cão branco fujo das águas
para uma mesa poligonal de cervejas,
misteriosamente como quem sabe e não esquece
que, ao sol ou à chuva, podiam ter morrido,
hoje, sete ou oito mestres do som em fúria
(chamam-lhes, também, pilotos)
naquele vento de armas, dólares e pneus.
Falta-me agradecer a excepção
de me terem deixado entrar para junto dos motores,
armado com o meu cão. Bicho longo,
com alma de bombeiro ; a beber cerveja
ao pé dele – conquista-se o paraíso!
Fernando Grade / Alcabideche, 20 de Setembro de 1987
In: Viola Delta : vol. XXXV : poemas sobre o desporto e outros / Abel Sabaoth, [et al.]. Estoril: Edições Mic, 2003, pp. 18-19.
Anteriormente publicado em: Compra-me um doido / Fernando Grade. Estoril: Ed. Mic, 1988 (esgotado)
Sem comentários:
Enviar um comentário