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ODE AO DESTINO
Destino: desisti, regresso, aqui me tens.
Em vão tentei quebrar o círculo mágico
das tuas coincidências, dos teus sinais, das ameaças,
do recolher felino das tuas unhas retracteis
- ah então no silêncio tranquilo, eu me encolhia ansioso
esperando já sentir o próximo golpe inesperado.
Em vão tentei não conhecer-te, não notar
como tudo se ordenava, como as pessoas e as coisas chegavam em bandos,
que eu, de soslaio, e disfarçando, observava
para conter as palavras, as minhas e as dos outros,
para dominar a tempo um gesto de amizade inoportuna.
Eu sabia, sabia, e procurei esconder-te,
afogar-te em sistemas, em esperanças, em audácias;
descendo à fé só em mim próprio, até busquei
sentir-te imenso, exacto, magnânimo,
único mistério de um mundo cujo mistério eras tu.
Lei universal que a sem-razão constrói,
de um Deus ínvio caminho, capricho dos Deuses,
soberana essência do real anterior a tudo,
Providência, Acaso, falta de vontade minha,
superstição, metafísica barata, medo infantil, loucura,
complexos variados mais ou menos freudianos,
contradição ridícula não superada pelo menino burguês,
educação falhada, fraqueza de espírito, a solidão da vida,
existirás ou não, serás tudo isso ou não, só isto ou só aquilo,
mas desisti, regresso, aqui me tens.
A humilhação de confessar-te em público,
nesta época de numerosos sábios e filósofos,
não é maior que a de viver sem ti.
A decadência, a desgraça, a abdicação,
os risos de ironia dos vizinhos
nesta rua de má-nota em que todos moramos,
não são piores, ah não, do que no dia a dia sem ti.
É nesta mesma rua que eu ouço o amor chamar por mim,
é nela mesma que eu vejo emprestar nações a juros,
é nela que eu tenho empenhado os meus haveres e os dos outros,
nela que se exibem os rostos alegres, serenos, graciosos,
dos que preparam as catástrofes, dos que as gozam, dos que são as vítimas.
É nesta mesma rua que eu
ouço todos os sonhos passar desfeitos.
Desisti, regresso, aqui me tens,
coberto de vergonha e de maus versos,
para continuar lutando, continuar morrendo,
continuar perdendo-me de tudo e todos,
mas à tua sombra nenhuma e tutelar.
Jorge de Sena
Pedra Filosofal, 1950
republicado em: Poesia - I, 2.ª ed., Moraes Ed., 1977
So let's...
"Flow My Tears" (John Dowland, 1563-1626)
/ by Andreas Schöll, countertenor
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2 comentários:
Um dos mais belos e intensos poemas de Jorge Sena!
Venero tal humildade, o despojamenro de uma alma perante a invencibilidade do 'destino', esse que nos persegue desde o primeiro suspiro, e nos agarra no último...
Em contratempo 'Flow My Tears" (John Dowland), num tempo de absorta paisagem, sem brusquidão.
Abraço,
... pelo olhar em 'fragmentos', sensibilizada!
Obrigado, pelo seu tocante comentário (o toque da pianista) e parabéns pelo seu blog "Fragmentos Culturais" (in: http://fragmentosculturais.blogspot.com/ ) que acabámos de visitar, e no qual encontrámos muitos pontos de identidade com o projecto Ars Integrata (in: http://arsintegrata.blogspot.com/) em que nos inserimos. Sena é, de facto, um dos nossos poetas preferidos, e passadas 3 décadas da sua morte física continua a ser uma voz incómoda. Dowland faz parte do nosso reportório musical...
Com muito apreço
Ars Poetica 2U
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