Jorge Casimiro, poeta que é também físico, investigador, ensaísta, e homem de mil e uma actividades, dá-nos em acto de homenagem e para que não caia no esquecimento ("porque de silêncio também se morre", diz-nos o autor), no seu último livro, uma visão poética diferente de um tema que inspirou José Régio e se tornou, pela voz de João Vilaret, um dos mais célebres da poesia portuguesa.
CÂNTICO NEGRO
neste labirinto de silêncios palpáveis
desenho com o dedo a suspeita de estar só
e um bando de canetas voa espavorido do ninho
solto aos quatro ventos
em jorros de tinta negra
negra como o mais negro dos cânticos
que aqui onde vou não arrasto pés sangrentos
nem desbravo florestas inexploradas
nem terras-de-ninguém devassadas
nem pântanos secos
sem troncos ocos
sem areias movediças
sem água
sem lodo
sem cais
sem sereias de caudas postiças
sem lamas
nem dalai lama
nem pecados originais
não! mais gente não!
que eu não vivo para infectar amores antagónicos entre deuses e demónios
se vivo é só p’ra proclamar a morte da última ave do paraíso
atacada de taquicardia voluptuosa
p’ra declarar louca toda a bússola que me aponte o norte
p’ra caminhar na berma bamba do abismo sem rede
e engolir em seco todo
de chofre
ou em silêncio assina a sua sentença de morte
sempre em silêncio
porque de silêncio
também se morre
Jorge Casimiro
in: Murmúrios ventos. [S.l.] : Pássaro de Fogo, 2006
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